quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Texto que escrevi num momento de revolta

A Ação Declaratória de Constitucionalidade 16 ou Mais uma Carta Branca para a Administração Pública

Cláudio-Alexandre dos Santos e Silva, é Advogado, Professor Universitário, Especialista em Direito do Trabalho.

“Os grandes que socorreram o rei buscavam e receberam distinção, honra, prestígio social, em forma de nobilitações, títulos, privilégios, isenções, liberdades e franquias, mas igualmente favores com retorno material, como os postos na administração e na arrematação de impostos.”
Jurandir Malerba – A Corte no Exílio

Analisando os acontecimentos jurídicos recentes em nosso País, nos deparamos com o julgamento no último dia 24/11/2010 da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 16 onde se discutia em síntese a constitucionalidade do § 1º do Artigo 71 da Lei 8.666/1993 (Lei das Licitações) sob o argumento de que tal dispositivo “tem sofrido ampla retaliação por parte de órgãos do Poder Judiciário, em especial o Tribunal Superior do Trabalho, que diuturnamente nega vigência ao comando normativo expresso no artigo 71, § 1º da Lei Federal nº 8.666/1993. Nesse sentido, o TST fez editar enunciado de súmula da jurisprudência dominante, em entendimento diametralmente oposto ao da norma transcrita, responsabilizando subsidiariamente tanto a Administração Direta quanto a indireta em relação aos débitos trabalhistas, quando atuar como contratante de qualquer serviço de terceiro especializado” (extraído da petição inicial).


O TST, Corte Especializada em lides trabalhistas, editou no longíquo ano de 1993 a Súmula 331 que em seu inciso IV, após algumas modificações, alcançou a seguinte redação:


IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei nº 8.666, de 21.06.1993).


Segundo tal entendimento, desde que o Trabalhador, parte hipossuficiente da relação laboral, fizesse integrar no pólo passivo da demanda o ente público contratante, estaria assegurando o recebimento de maneira subsidiária daquilo que lhe era devido em virtude de ter colocado a sua força de trabalho à disposição do seu empregador, mas indiretamente da própria administração pública.


Note-se que não estamos diante de qualquer absurdo, posto que o artigo 37 da Constituição Federal em sua cabeça prevê como princípios norteadores da Administração
Pública, dentre outros, a moralidade e a eficiência.


Ora, se é dever da Administração Pública agir com eficiência nos parece claro que deveria ser responsabilizada quando de maneira ineficiente contratou quem não poderia ser contratado, seja por falta de idoneidade financeira ou por má-gestão, ou até mesmo por histórico de descumprimento de normas trabalhistas.


Mas aí poderia ser perguntado: Não foi exatamente isso que o STF fez ao decidir que a Administração Pública só poderia ser responsabilizada quando comprovado que pecou na escolha e na fiscalização (culpas in eligendo e in vigilando)? É aí onde mora o cerne de toda a questão, uma decisão que parece nada mudar, mas que, sem cancelar um entendimento consolidado lhe retira a eficácia. Explicaremos.



No quadro pré decisão do STF não era necessário ao Empregado comprovar que a contratação se deu de maneira fraudulenta, ou que a fiscalização foi falha ou que faltava ab initio idoneidade financeira e patrimonial, cabendo apenas ao mesmo incluir o ente estatal no pólo passivo da demanda.



Ora, tal entendimento se coaduna com toda a principiologia que envolve o direito do trabalho no Brasil e no mundo, onde temos um ramo da ciência jurídica que parte de uma única premissa: o empregado é parte hipossuficiente na relação.



A hipossuficiência pode ser fática, técnica ou jurídica. No caso ora discutido vamos nos concentrar no viés jurídico ou científico da hipossuficiência que recairá indubitavelmente sobre a distribuição do ônus probatório no processo trabalhista.
Durante muito tempo se discutiu se sede doutrinária e jurisprudencial, qual seria a implicação processual do reconhecimento da vulnerabilidade do empregado face o empregador, mormente no que tange à distribuição do ônus probatório.



De um lado tivemos os defensores da aplicação do princípio para fins de afastar a norma contida no artigo 818 Consolidado, entendendo que na dúvida a lide deveria ser decidida em favor do Reclamante. De outro se levantou entendimento no sentido de que a regra do artigo 818, por ser de direito processual, não sofreria a influência do princípio da vulnerabilidade, não sendo possível ao magistrado inverter o ônus probatório devendo aplicar o disposto no artigo adredemente citado.



Assente nesse entendimento o TST, analisando a dificuldade que envolveria a prova a ser realizada pelo empregado, editou a multicitada Súmula aplicando a regra geral prevista no artigo 818 da CLT, qual seja, a prova dos fatos cabe a quem os alega.


Assim bastava ao empregado comprovar que tinha trabalhado para a empresa, demonstrar durante a instrução probatória que a empresa tinha prestado serviço para um ente público e incluísse tal ente no pólo passivo para que obtivesse a tutela jurisdicional que reconheceria a responsabilidade subsidiária da pessoa jurídica de direito público.



Com o entendimento abraçado pelo STF, que declarou a constitucionalidade do artigo 71, § 1º da Lei 8.666/93 tivemos uma guinada de 180 graus na matéria já que agora é ônus probatório do empregado comprovar que a Administração Pública teria falhado na escolha e fiscalização das empresas contratadas, transferindo assim um ônus muito grande para não dizer intransponível para o hipossuficiente da relação.



Veja que não se alterou o texto da Súmula, não se determinou o seu cancelamento, apenas se retirou a sua eficácia prática, já que o empregado terá a difícil missão de comprovar que a administração falhou ao fiscalizar e escolher as empresas contratadas, caso contrário, não se desincumbindo de tal ônus probatório, deverá recair única e exclusivamente sobre a empresa contratante a condenação, empresas essa muitas vezes fantasmas, sem idoneidade financeira, que se aventuram na falta de transparência com que a coisa pública é tratada em nosso País.



Daí chamamos a atenção para que a história cumpra o seu papel de nos mostrar onde erramos para que não cometamos os mesmos erros. Começamos o texto com um enxerto extraído do livro 1808 de Laurentino Gomes, que por sua vez o buscou em texto escrito à época da chegada da família real ao Brasil, fugida que estava do poder napoleônico que assolava a Europa Continental.



Era uma Corte perdulária, que segundo informações contidas no livro gastou em valores atualizado num único jantar para comemorar o noivado de Pedro I a quantia de R$ 12.000,00 (doze milhões de reais), que fundou o Banco do Brasil – o primeiro, já que esse que aí se encontra é o segundo – sem possuir qualquer dinheiro passando a arrecadar através de “doações” dos abastados da colônia valores para bancar suas gastanças.



É claro que tais “doações” não ocorriam simplesmente para agradar o monarca mas sim para dele obter benesses de todos os tipos, inclusive carta branca para sonegar, desrespeitar normas, obter quantias vultosas sem a intervenção estatal.



É assim que passamos a desconfiar dessa decisão proferida, decisão que em primeira mão e no passar d’olhos em nada alterou o quadro atual, já que a discussão não é se a Súmula é válida ou não, pois o STF em verdade disse que a mesma é válida e que a Administração Pública pode ser responsabilizada.



“Nada mudou”, proclamarão os defensores da nova tese, exceto que agora, na prática, caberá ao empregado se desincumbir de ônus quase intransponível imposto pelo Estado, esse mesmo Estado que continua a ser fonte de riqueza para corruptos e perdulários e que não respeita os mais comezinhos direitos dos cidadãos. Quer saber, temos que concordar realmente nada mudou.

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