quinta-feira, 29 de abril de 2010

VÍCIOS FORENSES

> Dois zeladores do fórum, muito caipiras, mas extremamente
> observadores, numa certa manhã de pouco serviço, depois de vinte anos
> de trabalho no local, habituados ao linguajar forense, mas nem sempre
> conhecendo o significado dos termos, postaram-se a prosear:
>
> Compadre João, hoje amanheci agravado. Tentei embargar esse meu
> sentimento retido, até que decaí. "Cassei" uma forma de penhorar uma
> melhora, arrestar um alento, seqüestrar um alívio, mas a dor fez busca
> e a apreensão da minha fel icidade: tive uma conversa sumária com a
> minha filha sobre o ordinário do noivo dela.
> Disse que vou levar aquele réu pro Fórum, seja em que foro for. Vou
> pedir ao Juízo, ao Ministério Público, de qualquer instância ou
> entrância. Não importa a jurisdição, mas esse ano aquele condenado
> casa!
>
> Calma, compadre Pedro - interrompeu o zelador João.
> Preliminarmente, sem querer contestar ou impugnar sua
> inicial,aconselho o senhor a dar uma oportunidade de defesa para o
> requerido - atente para o contraditório.
> Eu até dou pro senhor uma jurisprudência a respeito: minha filha
> tinha, também, um namorado contumaz, quase revel. O caso deles, em
> comparação ao da sua filha, é litispendência pura; conexão,
> continência.. . E eu consegui resolver o incidente. Acho que o senhor
> tá julgando só com base na forma, sem analisar o mérito.
>
> O zelador Pedro, após ouvir, retrucou:
> Mas compadre, não tem jeito. O indiciado não segue o rito: se eu
> mostro razão, ele contrarrazoa; se eu contesto, ele replica. Pra falar
> a verdade, tô perdendo a contrafé. Achei que, passada a fase
> instrutória, depois da especificação, a coisa fosse melhorar. Mas não.
> Já tentei de toda forma sanear a lide - tudo em vão. Baixei , outro
> dia, um provimento, cobrando custas pelo uso do sofá lá de casa,
> objeto material que os dois usam de madrugada. No entanto, ele,
> achando interlocutória minha decisão, recorreu, e disse que não
> paga nem por precatório... Aí eu perdi as estribeiras: desobedeci o
> princípio da fungibilidade e deixei de receber o recurso…
>
> Nossa, compadre, o senhor chegou a esse ponto? - indagou o zelador
> João, que continuou:
> Mas, compadre, o bem tu telado é sua filha - releve. Faça o
> seguinte,compadre Pedro: marque uma audiência, ouça testemunhas e
> nomeie perito. Só assim vamos saber se a menina ainda é moça. Se houve
> atentado ao pudor ou se a sedução se consumou.
>
> Pedro ouvia atento, quando interferiu:
> É mesmo, compadre. Se ele não comparecer, busco debaixo de vara; ainda
> assim, se não encontrar ele, aplico a confissão ficta. Quando eu
> lembro que ele tá quase abandonando a causa… Minha filha naquela
> carência, e o suplicado sem interesse; ela com toda legitimidade, e
> ele só litigando de má-fé.
>
> Isso mesmo, compadre Pedro - apoiou João, que completou:
> O processo deve ser esse. O procedimento escolhido é o mais certo.
> Mas, antes de sentenciar, inspecione e verifique se tudo foi
> certificado. Dê um prazo peremptório, veja o direito substantivo e> ;
> procure algum adjetivo na conduta típica do elemento. Cuidado para não
> haver defeito de representação, pois do contrário, tudo pode ser
> baixado em diligência.
>
> … Só tem um problema - ponderou:
> É que a comadre é uma tribunal - o senhor é "a quo" e ela é "ad quem"…
> Se sua mulher der apoio ao rapaz, tá tudo perdido: baixa um acórdão
> já transitado em julgado, encerra a atividade jurisdicional do senhor
> e manda tirar o nome do moço do rol dos culpados, incluindo o
> compadre.
>
> É… É, compadre - disse Pedro desanimado.
> -O senhor tem razão. Eu vô é largar mão dessa minha improcedência,
> refrescar meus memoriais, e extinguir o caso, arquivando o feito, com
> baixa na distribuição. Acho, até, com base na verdade real, que a
> questão de fundo da menina já foi sucumbida pelo indiciado. Não cabe
> nem rescisória.
>
> E no mesmíssimo momento, exclamaram os compadres:
> "Data vênia"!

Um comentário:

  1. Excelente conto. Esses vícios forenses foi muito bem recebido nos meios de comunicação.
    Jefhcardoso do http://jefhcardoso.blogspot.com

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